quinta-feira, 5 de julho de 2007

Humanos, Humanistas e Charlatões

Jesus Cristo combateu, de maneira veemente, os religiosos de sua época. Acusou-os de hipocrisia, falsidade, mentira e avareza. Denunciou a manipulação que eles faziam do povo e chegou a virar suas bancas de vendas, dentro do próprio templo.

A religiosidade, da forma como os fariseus a praticavam, evidencia o apego humano aos dogmas e às tradições, o que condiciona as pessoas a valorizarem mais os padrões impostos por homens do que o próprio Deus, para o qual o ser humano deveria direcionar sua vida por meio da religião (religare).

Propagado o cristianismo, não como uma instituição sedimentada, mas como uma revelação disseminada às custas do amor dos discípulos de Cristo, tornou-se, então, por conta de circunstâncias históricas, a religião oficial do Estado. Com isso, e sem demora, dogmas e tradições foram sendo inseridos ao contexto religioso, e as mazelas e incoerências, perceptíveis nos fariseus do tempo de Jesus, voltaram a aparecer.

A Reforma Protestante (desculpem a absurda síntese histórica), no século XVI, trouxe, em alguns aspectos, de volta, conceitos da verdadeira religião, porém, o tempo revigorou a institucionalização também desta nova religião, tornando-a, da mesma forma, um arcabouço de regras e tradições que, ainda que em proporção infinitamente inferiores às do Catolicismo, causam, do mesmo jeito, em seus adeptos, o apego às doutrinas e às tradições, ainda que estas sejam, muitas vezes, diversas dos próprios ensinamentos bíblicos.

Sempre existiu, em meio à história eclesiástica e das religiões, os seus contestadores, reformadores e críticos. Não apenas os 'de fora', mas, principalmente, no próprio seio da Igreja, existiram homens que, por meio de seus escritos e pregações, tentaram resgatar a religião aos seus princípios originais, ao seu objetivo inerente (conduzir ou religar o homem a Deus).

Isso aconteceu em todas as épocas e, creio eu, em todas as religiões. No cristianismo, sem dúvida. Concordando ou não com eles, homens como Erasmo ou Lutero (citando apenas pequeno, mas fervilhante, período da história eclesiástica) romperam com tradições (não todas), com idéias sedimentadas e atacaram aquilo que eles consideravam como feridas no meio da religião. Não se pode dizer que tudo o que eles disseram era correto e justo, mas, é evidente, que em muita coisa eles tinham razão.

Dando um salto para os dias de hoje, vemos, ainda, a religião sofrendo com os mesmos problemas de sempre: hipocrisia, mentiras, manipulação, dogmas em exagero e sem qualquer fundamentação bíblica, além da promiscuidade com o dinheiro e com o poder.

Diante disso, como sempre há de ser, surgem, dentro da própria religião, os arautos da renovação, da reforma, ou, até mesmo, da cisão fundamentada e legítima. Estes são homens que, já com alguma experiência no manejar eclesiástico, percebem, não do dia para a noite, que as mazelas da instituição, da qual fazem parte, são grandes e precisam ser combatidas.

Considero que tais movimentos, organizados ou não, são justos. Primeiro porque essa dialética é sempre saudável; segundo, porque, como defendo ardentemente, a liberdade de expressar o pensamento é um direito (mais: é absolutamente natural) de todo ser humano.

No entanto, que não seja uma via de mão única. A possibilidade de contestação sempre existe, e é salutar. E dentro dessa disputa (pacífica ou nem tanto) há, além dos argumentos, as tendências pessoais, as idiossincrasias e os interesses, é claro.

Falando desses contestadores modernos, percebe-se, claramente, uma tentativa de promover uma apologia à humanidade. Como se fosse uma redescoberta da percepção do caráter humano, de sua natureza e realidade. Com isso, acreditam reavivar um relacionamento mais sincero com o Criador. Conhecendo e vivenciando sua verdadeira natureza, o homem, segundo interpreto de suas argumentações, é mais capaz de manter um relacionamento sincero e verdadeiro com Deus.

Inescapável é esta verdade. Um relacionamento verdadeiro só é possível quando as partes envolvidas são reais, não apenas existencialmente, mas em compreensão própria e intenções transparentes. Como para Deus é impossível qualquer vacilo em relação a si mesmo, cabe ao homem compreender-se, aceitar-se e escrutar seu próprio ser, na tentativa do encontro da verdade, do real.

Porém, se até aqui, teoricamente ao menos, concordo com tais proposições, começo a torcer o nariz quando mergulho um pouco mais fundo, até a materialização da beleza da teoria na prática vivencial.

Na ânsia de promover a humanidade, o que estou começando a perceber nestes contestadores da religiosidade vazia e maculada é a radicalização humanista. Sendo o homem a referência, todo o restante: religião, Bíblia e até Deus, acabam por precisarem ser moldados a esta nova visão.

Na prática, o que é esta nova (ou velha, dependendo da intenção) forma de relacionar-se com Deus? Conhecendo o homem a si mesmo, aceitando suas mazelas e fraquezas, compreende que, para ele, é impossível 'alcançar' Deus por meio de seus méritos. Concordo, e já escrevi um texto que fala sobre isso (O Abismo). No entanto, um dos pilares desta nova retórica é a crítica à busca, irreal e desmedida, da pureza (santidade). Não vou ser injusto, não chegam a criticar a santidade em si, mas a busca desmedida, irreal e, muitas vezes hipócrita, de uma pureza que atrairia o amor de Deus e, conseqüentemente, suas dádivas. Porém, ainda que o princípio do pensamento seja irretocável, o fim deste rio de argumentos deságua na completa negação da santidade. Tal palavra passou a ser, para eles, quase sinônimo de hipocrisia.

Em sua teologia, ou interpretação da realidade, como queiram, entendem que Deus nos fez assim, e devemos nos aceitar como somos: sem culpas desmedidas e auto-condenações. E mais, se Deus nos fez assim, é para que vivenciemos esta realidade, esta natureza, de maneira plena.

Para mim, ao menos, isto me parece um canto de sereia, que seduz, agrada e convida aos seus braços, mas, no fim, acaba por nos afogar nas águas do pecado. Digo isso, pois me vi sendo seduzido por tais argumentos e caminhando, assim, para este humanismo religioso.

O que me fez desvencilhar dos braços da sereia foi (creio que por obra do Espírito Santo) a percepção de duas coisas:

Primeiro: a Bíblia não pode moldar-se a minha visão de mundo, e menos à minha humanidade absolutamente falível. Pelo contrário, devo eu me envolver em suas verdade e deixar que ela indique quem eu sou, como devo viver e como me relacionar com Deus. Diante disso, ainda que concorde que esse relacionamento só é possível por meio de uma sinceridade absoluta, e de uma compreensão abrangente de quem eu sou, não posso negar algumas verdades e princípios que a Palavra de Deus me coloca claramente: 'negue-se a si mesmo', carregue a sua cruz', 'sede santos'. Tais conselhos (veja que não os coloquei como mandamentos) são indubitáveis em seu objetivo. Negar a si mesmo só pode ser negar a sua realidade, sua maneira de pensar, seus valores e, de alguma forma, sua humanidade pecaminosa. Negar, aqui, não é desconhecer o que se é, mas não concordar consigo, à maneira de Paulo: 'aquilo que quero não faço, mas aquilo que não quero, isso faço'. Carregar a cruz é submeter-se às dificuldades das escolhas cristãs, com suas privações, sim, com suas rejeições e, até mesmo, sacrifícios (outra palavrinha mal interpretada). Ser santo é purificar-se, ou seja, viver de maneira cada vez menos pecaminosa. Por mais que se dêem outras interpretações à santidade, e é verdade que elas existem, neste caso se trata disso mesmo. Esta análise foi o que começou a me despertar para a desconfiança em relação a este nova retórica.

Porém, o que me despertou de vez, com de um sobressalto, foi perceber que os argumentos desses novos pregadores são idênticos, em sua base de sustentação, àqueles pregados em igrejas como a Universal do Reino de Deus e, também, na mídia secular. Vejamos:

Estava assistindo a um programa da Igreja Universal, o qual fora iniciado com um clipe musical, com uma música pretensamente gospel, no qual passava cenas de pessoas desfrutando seus bens de consumo. Eram mansões, carros de luxo, barcos e tudo o que o dinheiro (e só muito dinheiro) pode comprar. Entrando em cena, então, o bispo da igreja (um bem conhecido, porém não lembro de seu nome), suas palavras foram certeiras: "Está vendo tudo isso meu irmão! Você pode ter tudo isso. Se Deus te colocou neste mundo é para usufruir dessas coisas. Isso é pra você!".

Qual a semelhança com o discurso daqueles outros pastores? Está na base do pensamento: se Deus te fez assim, é para ser assim. Que fique claro, não estou comparando intenções, longe disso. Nem mesmo igualando os discursos. Apenas estou me referindo à sustentação dos argumentos apresentados. Ambos se baseiam na mesma idéia: o homem como a medida das coisas.

Eu poderia citar uma frase do Rubem Alves, por exemplo: "Se Deus não nos tivesse criado para o prazer, Ele (ou Ela) não nos teria dado tantos brinquedos para o corpo, como os gostos, os sons, as cores, as formas, os cheiros, as carícias, e não teria dotado o corpo de tantos órgãos eróticos - no ('Teologia do Cotidiano')". O ser humano aqui é a referência para a moral sexual e não a Palavra de Deus. Não sendo um moralista na área da sexualidade (quem me conhece sabe disso), frases como esta são o convite a todo tipo de perversão, inclusive sexual. Ora, se a moral é medida pelo corpo e seus sentidos, qual a limitação, então? E mais perigoso, é como pode se estender isso a outras áreas da vida, possibilitando a quebra de toda regra moral, sendo esta apenas medida pelas sensações individuais, e não mais por critérios objetivos e definidos. Tratando-se de Rubem Alves, a gente sabe no que deu.

E o pior é que essa visão contemporânea está sendo compartilhada, num coro em uníssono, por vozes que, de cristãs, não possuem nem o calendário pendurado na geladeira.

Um exemplo é a música, de autoria de Paulinho Moska e Zélia Duncan, de abertura da novela das sete - Sete Pecados, da rede Globo, da qual, transcrevo a letra:

A alegria do pecado
Às vezes toma conta de mim
E é tão bom não ser divina
Me cobrir de humanidade me fascina
E me aproxima do céu

E eu gosto
De estar na terra
Cada vez mais
Minha boca se abre e espera
O direito ainda que profano
Do mundo ser sempre mais humano

Pois Perfeição demais
Me agita os instintos
Quem se diz muito perfeito
Na certa encontrou um jeito insosso
Pra não ser de carne e osso
Pra não ser carne e osso

Alguma semelhança no discurso? ‘Me cobrir de humanidade (...) me aproxima do céu’; ‘O direito, ainda que profano, do mundo ser sempre mais humano’; ‘perfeição demais’; ‘quem se diz muito perfeito’. São as mesmas palavras, numa identidade harmoniosa e espantosa. Parece que todos caminham numa mesma direção...

Mentiras satânicas têm envolvido às igrejas e seus fiéis, num emaranhado ideológico sutil. Suprimindo toda a objetividade e certeza, preferem implodir todo e qualquer edifício construído à custa de muita meditação, debates e, até sangue, ao invés de, como um humilde pedreiro, aproveitar aquilo que resiste ao tempo, por ser sólido e bem planejado.

Com a desculpa da busca pelo relacionamento sincero, rejeitam diversas certezas bíblicas, relativizam princípios e moral e renegam conquistas históricas. Creio que muitos são sinceros nesta busca, e caminham assim por também terem sido envolvidos nesta retórica que iniciou-se, falando apenas de nossos contemporâneos, já há algumas décadas.

Mas no fim, percebo que junto aos humanos e humanistas, sobrevivem os charlatões, todos cantando em alta voz o canto da sereia, que seduz, hipnotiza e, se eu estiver certo, terminará por afundar os nossos barcos nos rochedos do relativismo universal.
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